terça-feira, 12 de julho de 2011

Os Antigos Canoeiros do Rio Jequitinhonha

 

 

Tamanho da fonte: Aumentar Texto Diminuir Texto
Diário do Jequi Canoeiro do Jequitinhonha Foto: Dilton Mascarenhas
Dilton Macarenhas escreve sobre os Antigos Canoeiros do Jequitinhonha.
Os Antigos Canoeiros do Rio Jequitinhonha
Por * Dilton Mascarenhas
      O histórico e lendário rio Jequitinhonha possui 1.082 km de extensão e aproximadamente 800.000 anos de existência. Percorre 886 km em solo mineiro e 196 km em terras baianas, constituindo-se numa das mais importantes artérias fluviais do Brasil. Inicialmente utilizado pelos canoeiros para acesso ao nordeste de Minas Gerais, este rio perfaz cerca de 450 ininterruptos anos como via fluvial.
      Os antigos canoeiros do rio Jequitinhonha, tornaram-se, na época em que este rio era o único caminho e a canoa praticamente o único transporte, nos principais precursores da região, ao contribuir para a disseminação de povoamentos e por influenciar no econômico e social, em grande parte do vasto território do Vale do Jequitinhonha.
      Em 1850, enquanto a navegação entre as longínquas Araçuaí, em Minas, e Belmonte, na Bahia, grandes pólos comerciais da época, era relativamente intensa, não havia tropeiros que não soubesse dos seus caminhos. Para Araçuaí, convergiam mercadorias procedentes de localidades a 50 léguas de distância. Belmonte recebia produtos manufaturados e industrializados, alguns importados da Europa e Àfrica. Entretanto, entre os fins do séc. XIX, e o início do séc. XX, a navegação desintensificou-se consideravelmente. Porém, em 1920, retornou com grande ímpeto. Mas, as sucessivas abertura de estradas, com o crescente emprego de tropas de animais cargueiros, fadava a navegação ao declínio.
      Todavia, até meados do século XX, inúmeras mercadorias e distintos passageiros, embarcados em grandes canoas, navegaram por longos trechos deste rio. A navegação no Jequitinhonha declinou sofrivelmente, é verdade! Contudo, jamais deixou de existir! Ainda que modesta, a navegação neste rio sempre haverá, porque ser canoeiro é a mais significativa essência da alma do barranqueiro do Jequitinhonha, é da raça, está no próprio sangue... É histórico, cultural!

xxx
      Tempos em que a navegação teve grande importância econômica, a designação canoeiro tinha três básicas. Identificava aqueles que, utilizando-se de imensos toros de madeira de lei, construíam canoas, aos que nelas navegavam, e também quem as possuíam. Entre os canoeiros navegantes havia os proeiros e os pilotos. Os proeiros remavam na proa e no centro da embarcação. Os pilotos, remavam na popa, as direcionavam, respondiam pela embarcação, mercadorias, pousos, destinos, e passageiros.
      As antigas canoas que navegaram no rio Jequitinhonha, eram construídas a partir de centenários caules de vinháticos, putumujús, oiticicas, ipês, e outras árvores que na atualidade estão quase extintas. Na atualidade, a maior canoa do Jequitinhonha, é a canoa Suíça II, com 20 metros de comprimento, 1,2 m de largura e 0,80 m de altura. Construída com o caule de uma monumental árvore, permanece navegando com capacidade para transportar até 120 sacas de 60 quilos cada. Maior que esta, só se tem notícia da canoa Suíça I, que já não existe.

xxx
      Entre os antigos canoeiros do Jequitinhonha, uma sagaz tradição estabelecia que durante a navegação, tudo que estivesse ao alcance da corda da proa da canoa, poderia ser subtraído, furtado ou roubado, sem que isto fosse necessariamente ilegal. Então, preventivamente, ribeirinhos evitavam implantar árvores frutíferas, lavouras e hortas, muito próximas à margem do rio. Uma interessante particularidade dos canoeiros refere-se ao fato de optarem em ficar excessivamente à vontade... Especialmente os proeiros, que prevenindo assadura entre as pernas, decorrentes do ir e vir com a vara para impulsionar a embarcação, davam preferência a vestir apenas um camisão, e nada mais! Este conhecido costume fazia com que as lavadeiras, a ver tais navegantes, se escondessem no mato até que passassem. Por sua vez, os canoeiros evitavam transportar mulheres e crianças. Entretanto, determinados proprietários rurais ribeirinhos, exigiam que ao chegar às proximidades da casa sede, os canoeiros se compusessem. Sem dúvidas, destes fazendeiros, muitos contavam com o infalível apoio da famosa carabina do papo amarelo!
xxx

      Navegando no mesmo sentido do curso do Jequitinhonha, quando o esforço para navegar é menor, os canoeiros, ritmados pelo ranger da volga, costumavam entoar o beira-mar, sua tradicional cantoria. Houve inclusive quem assegurasse, que ao ouvir o canto do beira-mar, algumas mulheres tornavam-se suscetíveis a seguir com eles.
      Remando no sentido contrário ao curso do rio, quando grande esforço era exigido, os proeiros firmavam uma das extremidades de uma grande vara nas pedras ou no leito do rio, e com o auxílio do músculo do peito, a empurravam pela extremidade superior, fazendo com que a canoa se deslocasse, viabilizando a navegação. Porém, muitas vezes, calos e feridas no peito, provocados pela ponta da vara, os afastavam temporariamente da atividade.
      À tardinha, preferencialmente aportados em ilhotas, após o desembarque dos passageiros, os canoeiros desembarcavam os porcos e davam-lhes milho para amadrinharem-se. Em seguida, descarregavam parte das mercadorias, armavam a barraca e a cobriam com o toldo, que servia à embarcação como vela. Acendiam o fogo e punham-se a pescar, até que chegasse a hora do jantar. Sempre muitos gulosos, davam preferência aos marchantes que mais lhes disponibilizassem mantimentos para a viagem. Antes de dormir, os proeiros esquentavam toucinho para usar nas feridas do peito. “Dia seguinte, caso algum porco se desgarrasse, seria caçado, morto, e salgado. Peixe no Jequitinhonha era muito farto, não tinha preço, não valia nada... Salgávamos e trocávamos por cachaça durante os pousos”. Esclareceu um ex-canoeiro.

xxx
      A viola nunca faltava às viagens. À noite, tocavam e cantavam o shottisch, a polka, o baião, e o coco, este último, um ritmo popular do nordeste brasileiro que fez muito sucesso. Os canoeiros também cantavam uma remota cantiga de saudoso refrão, que rememorava a histórica Vila de Cachoeirinha, fundada nos anos 1700, e o extinto Porto do Italiano, donde partiam as canoas mineiras com destino a Bahia, ambos, atualmente submersos nas profundezas do lago artificial criado por uma hidrelétrica instalada no baixo Jequitinhonha baiano, cujo refrão, assim dizia: Adeus, Cachoeirinha; Adeus, Voltinha do Italiano; Não sei quem ficou para trás; Só sei que os meus olhos seguem chorando!
xxx
      A vida de canoeiro era muito difícil, incerta e arriscada. O pagamento pelos seus serviços era insuficiente e as suas mais significativas compensações, acabavam sendo o prazer do convívio com o rio Jequitinhonha, o companheirismo entre os embarcadiços, a amizade firmada com os ribeirinhos, e principalmente, a renovada alegria do retorno, qual, parecia compensar todos os esforços, sacrifícios e sofrimentos das viagens!
      Os antigos canoeiros costumavam expressar sua paixão, amor ou interesse, através de uma pequenina e delicada flor, de suave cor lilás, conhecida como flor de canoeiro. Mas por fatalidade, esta dócil plantinha que só vegetava exclusivamente na área inundada pela hidrelétrica, foi extinta! No entanto, pai algum desejava ver sua filha namorando ou casada com canoeiro, mesmo que canoeiro ele fosse. Daí, quando encontrada a flor de canoeiro em casa, alguém da ala feminina, impreterivelmente, sofreria surra ou castigo.

xxx
      Um ex- canoeiro, piloto, comentou que em março de 1942, durante uma das memoráveis cheias do Jequitinhonha, resolveu, apesar do alto grau do rio, partir com destino a Belmonte. Em companhia de um proeiro, embicou a canoa no sentido do curso do rio, e seguiu com bastante mercadorias, e mais dois passageiros.
      O intenso volume das águas fez com que a sua piroga flutuasse rapidamente pelo rio abaixo. Mas, ao chegar às proximidades do encachoeiramento conhecido como Prisinganga, a intensa turbulência do rebojo provocado pelas águas deste temido encachoeirado, somado à sobrecarga da embarcação, fizeram com que o piloto perdesse o controle da canoa. Ã deriva, a embarcação rapidamente chocou-se a duas grandes pedras do leito do rio, lascando-se. As mercadorias afundaram. O piloto e o proeiro pularam rapidamente para uma destas pedras. Um dos passageiros agarrou-se a um grande fardo de alho, e boiando foi-se, até que por sorte, adiante esbarrou nos galhos de uma árvore que tombou para o rio. Mas o outro passageiro, lamentavelmente menos hábil, sequer teve o corpo encontrado!
      Um ex-canoeiro, construtor, relatou: “em 1929, peguei uma empreitada para fazer uma grande canoa, numa tremenda boca de duro, mata densa, hostil... Depois de mais de 200 dias de serviço, terminamos, a emborcamos, cobrimos com folhas de palmeira, e escondemos o material de trabalho debaixo dela. Dias depois, retornei para pegar as ferramentas. Quando fui pra meter a mão, dei de cara com uma cobra surucucu-de-fogo, de todo tamanho! Com o susto, saltei pra trás, peguei a chumbeira, e sentei fogo sem dó! Mesmo baleada, ela ainda tentou me pegar! Corri, peguei um pau, e jurei: sua infeliz malfazeja, de hoje em diante você não ofenderá nem o batizado, nem o bicho pagão. E tome pau na testa, tome pau... A monstra mediu 11 palmos e quatro dedos. Era a figura do cão... Cavei um buraco no chão, joguei esse “diabo” dentro, e tome terra na cara... Se um trem desse pegar um de nós, não tem doutor que dê jeito. Só Deus! Nesse dia, foi quem tomou conta de mim!”


*Jornalista. Registro Profissional MG 10 055 JP. Repórter Fotográfico

Um comentário:

  1. Todo conhecimento enriquece a mente, adorei cada trecho dessa postagem...

    ResponderExcluir